Não-monogamia: formatos vs. ideologias

525520_2945450523927_1132506454_n(Foto: Nubia Abe)

Muito se fala nos debates sobre não-monogamia acerca dos diferentes “formatos” existentes: poliamor, relação aberta, swing etc. Uma impressão comum é de que as diferenças estão apenas nas cláusulas, e que todos estão do mesmo lado quando o assunto é dizer não à monogamia. Já a impressão que eu gostaria de transmitir aqui é a de que, muito mais dos que cláusulas e formatos, o aspecto relevante são as ideologias por trás de cada proposta que se auto-intitula não-monogâmica, e que há uma cisão radical em torno desse ponto.

O swing, em que tipicamente um casal monogâmico participa de relações sexuais não-afetivas com outras pessoas, porém sempre juntos, e a relação aberta, em que membros de um casal monogâmico acordam poder ter relações com outras pessoas (com todo tipo de cláusula, tipicamente só permitindo relações sexuais não-afetivas e longe da presença do outro membro) estão muito mais próximas de uma tentativa de “salvar” a monogamia, ou, na melhor das hipóteses, “incrementá-la”, do que de fato entender o seu papel opressor e erradicála. Já o termo poliamor é, segundo declarações de muitas das próprias pessoas que o reivindicam, bem pouco definido. Nota-se, porém, que o movimento foca na possibilidade de relações sexuais envolvendo vínculo e profundidade afetiva com mais de uma pessoa, o que o distingue do swing e da relação aberta, onde o vínculo para além do casal é tipicamente tabu, ou onde há pelo menos uma forte tendência de preservação do caráter “afetivamente superior” da relação “primária” a dois. Uma coisa bastante reafirmada dentro do poliamor é a possibilidade de existência de todo tipo de cláusula limitadora, incluindo a chamada “polifidelidade” (onde não são permitidas relações fora do “núcleo”), e que por vezes não são simétricas, e podem mesmo reproduzir opressões existentes na sociedade. De fato, o poliamor, pelo seu caráter de não comprometimento político, acaba formando uma massa bastante heterogênea. Se por um lado há dentro do movimento pessoas que se reivindicam feministas, anticapitalistas e militantes das mais diversas causas, e relações bastante cuidadosas quanto a questões de poder e opressão, não há também nada que impeça uma relação poliamorosa de carregar todos os fardos da monogamia e do patriarcado, incluindo o machismo, as cobranças, a dependência emocional etc. Em suma, o que se pode dizer do poliamor é que a proposta pretende obter uma extensão quantitativa a partir da monogamia (i.e. aumentar o número de pessoas com quem se pode relacionar profundamente), porém não necessariamente questionar nenhum dos seus aspectos qualitativos.

Uma outra proposta, que ganhou o nome de relações livres, se diferencia de todas as demais por não ter como ponto de partida a ideia de salvar, melhorar ou mesmo se opor à monogamia. Na verdade, da forma como vista por mim e outras pessoas, o ponto de partida está bem longe disso, e a oposição à monogamia surge apenas como consequência. A premissa aqui é: destruir o patriarcado. Ou, em outras palavras: “não queremos que o homem cis hétero continue dominando o mundo e oprimindo todas as outras pessoas”. Para isso é necessário empoderar as mulheres, as pessoas trans, as pessoas sexo-diversas, e daí surgem naturalmente todas as pautas do feminismo, transfeminismo, movimentos de diversidade sexual e, de quebra, uma negação enfática à monogamia, que na sua essência é uma prisão que o patriarcado impôs às mulheres para preservar a propriedade privada nas mãos dos homens (um resumo sobre isso aqui). Enxergando a monogamia dessa forma, como um dos instrumentos de opressão impostos pelo patriarcado, é natural que a proposta não seja estendê-la ou melhorá-la, mas sim destruí-la.

Logo, a proposta das relações livres, ao contrário de todas as demais, é política em primeiro lugar, derivando diretamente da oposição ao patriarcado e à propriedade privada. Não se propõe simplesmente um novo formato, mas sim uma nova ideologia. É verdade que aqui estão inclusas as premissas éticas de que toda relação deve ser consensual, de que nenhuma pessoa tem o direito de intervir na liberdade sexual e afetiva de outras e de que nenhuma pessoa tem o dever de satisfazer as expectativas de outras. Também é verdade que aqui se incentivam as pessoas a serem autônomas e não dependerem, emocionalmente ou economicamente, de outras. Porém, esses pilares éticos não estão à deriva, mas firmemente ancorados num pensamento anti-patriarcal e anticapitalista, como resposta a um contexto social onde os homens cis hétero dispõem de mais meios para garantir a sua independêcia econômica, intelectual e emocional, além do direito de intervir na liberdade alheia, violar a consensualidade e não responder pelos seus atos, enquanto as mulheres estão sujeitas a toda forma de violação, cobrança e repressão, sendo pressionadas ou mesmo forçadas a depender emocionalmente e economicamente de um homem, e onde pessoas trans, não-binárias e sexo-diversas estão marginalizadas e vulneráveis a ódio e violência. Por isso, o cuidado é necessário o tempo todo dentro de cada relação para que não se reproduzam as opressões da sociedade, atentando à interseccionalidade das questões sexuais e de gênero com outros tipos de opressão. Não basta apenas tratar todas as pessoas igualmente, é necessário empoderar as pessoas oprimidas. A contraposição à norma monogâmica imposta socialmente, com todas as injustiças, violências, dependências e limitações que ele contém, é apenas uma das frentes de luta nesse processo. E tudo isso sem negar as particularidades de cada relação e as infinitas possibilidades de vínculo, sexualidade e afetividade que podem ser construídas.

 

7 comentários sobre “Não-monogamia: formatos vs. ideologias

  1. Ótimo texto. Lança uma luz sobre um assunto que a definição do poliamor trata de forma vaga… Sou homem, hétero, branco… só não sou rico… e a minha sensação geral é de que está tudo errado. Todos os paradigmas, o patriarcado… Tenho me sentido perdido pelo fato de não achar um espaço para pessoas que acreditem em relações livres, igualitárias… É difícil até ter com quem conversar sobre isso. Encontrar textos como o seu é um grande alívio.

  2. Nunca parei pra pensar nessas diferenças existentes em relações não-monogâmicas (Poliamor, Swing, Relação aberta e Relação livre). Interessante isso, mas:

    1) Faltou delimitar melhor o que seria a proprosta de relação defendida pela autora, né? Apontou apenas as diretrizes gerais que, sinceramente, já existem em relacionamentos não-monogâmicos (só não em todos).

    2) Eu ainda acho que afetividade é mais importante que qualquer coisa numa relação. Quando você diz que “a proposta da relação livre É POLÍTICA EM PRIMEIRO LUGAR”, pareceu-me algo bem distante da espontaneidade que deve ter um relacionamento. Pelo contrário, cheio de prioridades, medo de reproduzir opressões, etc.

    3) Feminismo e transfeminismo? Por que não falar logo em feminismo? Por que realçar o TRANSfeminismo? Seria esse termo uma reprodução inconsciente de transfobia? Humm…

    4) O texto abusa e usa de categorias generalizantes. “Homem cis hétero domina”, “mulher (qualquer que seja) é dominada”, “Toda relação monogâmica é um relação patriarcal”. E os tons de cinza? E os homens negros, ficam onde? Todas as relações monogâmicas (relação entre dois, independente do formato) possuem o mesmo grau abusivo de patriarcado apontado pela autora? É possível haver certo grau, em contrapartida, de desconstrução em relacionamentos monogâmicos?

    Como alternativa, recomendo o artigo “Ontologia e Gênero – O realismo crítico e o método das explicações constrativa”, da Cynthia Lins Hamlin, socióloga e estudiosa da epistemologia feminista. A abordagem ontológica/realista fará muito bem ao feminismo.

    Agradecido

  3. Nunca parei pra pensar nessas diferenças existentes em relações não-monogâmicas (Poliamor, Swing, Relação aberta e Relação livre). Interessante isso, mas:

    1) Faltou delimitar melhor o que seria a proprosta de relação defendida pela autora, né? Apontou apenas as diretrizes gerais que, sinceramente, já existem em relacionamentos não-monogâmicos (só não em todos).

    2) Eu ainda acho que afetividade é mais importante que qualquer coisa numa relação. Quando você diz que “a proposta da relação livre É POLÍTICA EM PRIMEIRO LUGAR”, pareceu-me algo bem distante da espontaneidade que deve ter um relacionamento. Pelo contrário, cheio de prioridades, medo de reproduzir opressões, etc.

    3) Feminismo e transfeminismo? Por que não falar logo em feminismo? Por que realçar o TRANSfeminismo? Seria esse termo uma reprodução inconsciente de transfobia? Humm…

    4) O texto abusa e usa de categorias generalizantes. “Homem cis hétero domina”, “mulher (qualquer que seja) é dominada”, “Toda relação monogâmica é um relação patriarcal”. E os tons de cinza? E os homens negros, ficam onde? Todas as relações monogâmicas (relação entre dois, independente do formato) possuem o mesmo grau abusivo de patriarcado apontado pela autora? É possível haver certo grau, em contrapartida, de desconstrução em relacionamentos monogâmicos?

    Como alternativa, recomendo o artigo “Ontologia e Gênero – O realismo crítico e o método das explicações constrativa”, da Cynthia Lins Hamlin, socióloga e estudiosa da epistemologia feminista. A abordagem ontológica/realista fará muito bem ao feminismo.

    Agradecido

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